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15 maio 2010

"Todo jornalista deveria estudar introdução à metodologia científica"


Entrevista com Maurício Wajngarten

O Dr. Maurício Wajngarten cita como exemplo das dificuldades com que se defronta a imprensa uma reportagem de Veja:

- Veja publicou, em outubro de 1996, uma reportagem sobre um cateter usado na UTI que poderia matar os pacientes. É um cateter usado como medidor de pressões e débito cardíaco. Quando o jornalista da revista me telefonou, a primeira pergunta já me deixou em estado de choque: "Cateterismo mata?" Respirei fundo. Sobre pontos específicos, respondi: "Não sei nada disso. Espere até a noite, para eu me informar. Vou lhe indicar colegas com grande experiência em UTI, você fala com eles. Mas, por favor, antes de mais nada, não confunda esse problema com cateterismo!"

O cardiologista imaginava onde a coisa poderia parar: "Se você tem um parente na UTI, não deixe colocar um cateter. Converse muito com o médico, para saber se não pode ser mortal." Esse foi o tom adotado na reportagem sobre o mesmo assunto transmitida pela rede de televisão CNN. Veja passou raspando pelo sensacionalismo. (Ver Reportagem de Veja sobre o cateterismo de Swan-Ganz.) Nos bastidores, algo que não é mencionado na revista, mas o médico revela: "A venda do cateter é um negócio de milhões de dólares por ano. O artigo original, na publicação médica americana, provocou queda do valor das ações da empresa fabricante."

Avidez e superficialidade

Uma combinação nada saudável, segundo o Dr. Wajngarten, é a avidez por novidades e a "falta de aprofundamento". Antes de afirmar-se que um remédio resolve determinado problema, é necessário todo um procedimento de natureza científica, muito complexo, sujeito a idas e vindas. Assim, as reportagens não deveriam de modo algum avançar como conclusões hipóteses ainda em exame:

- O processo de certificação de um medicamento é complexo, sutil. Em 1996, houve o caso do Amiodarona, excelente contra arritmia. Estudou-se se havia diminuição de mortalidade dos indivíduos. Houve na Argentina um megatrial, um teste com milhares de indivíduos, cujas conclusões foram positivas, mas houve em seguida outro nos Estados Unidos em função do qual os resultados do primeiro foram contestados. São tipos de pacientes diferentes, doses diferentes, tempos de aplicação diferentes. Mas no noticiário já se falava sem qualquer reserva em "novo tipo de medicamento, a Amiodarona". Dá a impressão de que o jornalista que leu o noticiário especializado não entendeu nada. A conseqüência negativa é que o cliente te telefona e pergunta por drogas novas.

A velocidade com que jornalistas se apropriam das informações, metabolizam-nas e passam-nas adiante é assustadora, segundo o médico do Incor. Ele conta que a discussão sobre determinados procedimentos e medicamentos é complexa nos próprios congressos:

- Às vezes, da platéia, alguém diz "Não concordo com isso" e toda a argumentação do expositor desaba. Imagine-se o que acontece quando um jornalista que é leigo lê apenas um comunicado feito pelos próprios interessados.

Soluções Mágicas

A temperatura da conversa sobe quando o foco recai nas soluções mágicas, ditas alternativas:

- Eu diria que com US$ 4 mil por mês dá para montar uma assessoria de imprensa que me faça aparecer em qualquer programa de televisão, inclusive nos que têm maior audiência.

Maurício Wajngarten cita o caso de um médico conhecido que preconiza o uso de EDTA (sigla em inglês de ácido etilenodiamintetracético) para o paciente "não envelhecer". A chamada quelação. "Ele aplicava um sorozinho com EDTA nos pacientes. Uma prática que começou nos EUA, mas lá foi sendo empurrada por proibições de um Estado para outro, até a fronteira do Novo México."

O cardiologista continua seu relato:

- Em 1995, um trabalho controlado, que durou dez anos, mostrou que não funcionava. Fazia-se exame e constatava-se a presença de cálcio. Quando colocavam realmente EDTA no soro, alguns pacientes tinham insuficiência renal. E a tal quelação custava US$ 2 mil. Aí o médico em questão parou de usar EDTA no soro. Tive um paciente que deixou de freqüentar meu consultório para fazer esse tratamento. Um dia, seus filhos mandaram examinar o que lhe estava sendo aplicado e constataram que era água com açúcar. Ao preço de US$ 2 mil.

(Existem numerosos sites na Internet em defesa da quelação, em inglês chelation; em geral, acusam o governo americano de mentir sobre o assunto.)

Quando se vê uma reportagem no Jornal Nacional sobre as virtudes da maratona para poupar o coração (como aconteceu no "Boa noite" de 28/1/97), é preciso levar em conta muita coisa que não foi dita. Que o maratonista, para começar, não faz nada do que os outros fazem de ruim, como fumar, beber, comer gordura.

- Exercício violento para quem não está acostumado pode ter conseqüências desastrosas - diz Wajngarten.
- O médico americano ouvido era sério, mas a reportagem recebeu tratamento discutível. Exercício a mais é melhor do que exercício a menos, mas a recomendação era pouco prática (64 quilômetros de corrida por semana), pouco convincente para a imensa maioria das pessoas que não têm tempo ou condições. A última palavra da American Heart Association e do General Surgeon dos EUA é: faça alguma coisa. Mas está provado que um indivíduo destreinado que faz exercício exagerado pela manhã corre risco sério. Um médico alemão e pesquisadores de Harvard apresentaram conclusões a respeito num congresso. A reportagem foi um pouco superficial e um pouco leviana. Ninguém pode se comparar a um maratonista. Além disso, não se pode perder de vista os interesses objetivamente envolvidos nesse tipo de reportagem: indústrias de tênis, calção e aparelhos, e academias de ginástica.

Rasteiras e charlatanismo

Outro prática escusa é desqualificar um tipo de tratamento para vender outro.

- Um belo dia, no Fantástico - conta o médico do Incor -, houve uma reportagem na qual se afirmava que ponte de safena não resolve, porque pode entupir. Ouviram o Dr. Zerbini, que deu uma resposta honesta. "Ponte de safena pode entupir?". "Pode." Depois, apresentava-se um tratamento mágico alternativo ao uso de ponte de safena. Na reportagem, um repórter aparecia diante do Incor: "Procuramos o Dr. Jatene, mas ele não quis dar entrevista." Colegas horrorizados com a desinformação telefonaram para o Jatene e perguntaram: "Por que você não deu entrevista, deixou veicular aquelas barbaridades?" "Porque iriam fazer comigo o que fizeram com o Zerbini: pegar um pedaço da declaração e isolar do contexto." A gente sabe que a maior das mentiras é a meia-verdade.

A temperatura continua subindo. Não provoca febre, mas o despejo de denúncias de charlatanismo:

- Cartilagem de tubarão (anunciada por Atayde Patreze, com a chancela acadêmica de professores da Universidade Federal do Ceará), ipê roxo, megavitaminas, recuperação da memória, emagrecimento, a propaganda de produtos miraculosos agora vem pela TV a cabo, de Miami ou mesmo do Brasil. Anticelulite, comprimidos de colágeno, soluções mágicas para problemas insolúveis. "Tome o chá XPTO e emagreça um quilo". KH3, famoso "rejuvenescedor". Melatonina. Calvície: é problema insolúvel, volta e meia aparece uma solução. Tudo falso, criminoso. Xarope Tossigripe: "Adeus à tosse". E às vezes a tosse não é de gripe, é de câncer no pulmão. Ou de tuberculose. Pomada contra hemorróidas, mas, vai ver, a pessoa está com câncer na próstata.

E os grandes laboratórios?

- Todo laboratório tem seu departamento de marketing. Mas os laboratórios éticos consideram que seu público alvo não é o paciente e sim o médico. Já os laboratórios como o Hemovirtus, não. Seu público alvo é o povão.

Saídas?

- Para mim, a imprensa é o que há de mais importante. A escola vem depois. Por isso é que tem de se aprimorar cada vez mais. Insisto em três pontos. Primeiro, não exagerar na busca do gancho, da novidade. Depois, capacitar o jornalista. Todo jornalista deveria estudar introdução à metodologia científica. Finalmente, ter uma atitude ética. O que é pago, é pago. Não pode haver propaganda disfarçada sob a rubrica "Divulgação", ou, pior, paga por baixo do pano.

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